quinta-feira, 11 de agosto de 2011

[Contribuição] De Sexo Frágil a Símbolo da Resistência em Épocas Sem Liberdade

Wanderson J. F. Gomes

Com 11 anos de idade ela ganhou “O Manifesto do Partido Comunista” e concebeu então para si a postura que fora adotada por toda a vida. Na infância e adolescência, não passou por necessidades hediondas, como muitos dos brasileiros que comumente vemos jogados nas calçadas de cada esquina, procurando um lugar seguro e minimamente coberto para se livrarem da chuva e passar as frias madrugadas, muito pelo contrário. Seu pai era bem pago, até mais pelo boom econômico vivido pelo país naquele período do que propriamente e unicamente por talento, o que se revertia em um lugar confortável na classe média alta do Rio de Janeiro, escolas particulares e acesso a formas de entretenimento utópicas para outros indivíduos brasileiros da mesma geração. Mas, no entanto, sua postura jamais foi de conivência, de comodismo, de “ditadura do fogão”, de afastamento dos principais espaços de construção política, mas sim de contribuições significativas, que se opuseram as táticas de fechamento nacional a uma elite militar tirana e castradora de toda e qualquer liberdade inerente ao ser, no momento de seu nascimento. Esta foi Vera Silvia Magalhães, mulher que revolucionava as regras sociais do próprio sexo, guerrilheira e “comunista da Guanabara”, como ela mesma gostava de se intitular.
Entretanto, mesmo com suas condições materiais favoráveis a outros caminhos, opostos a militância incansável, quais foram os principais fatores que fizeram desta mulher um eterno símbolo da luta pela liberdade no Brasil? Posso indicar três simples aspectos:
1 – suas condições de atmosfera. Tanto a mãe quanto o pai (esse mais assumido e firme) eram de esquerda. Ou seja, Vera cresceu, junto da irmã, em um ambiente totalmente favorável a uma postura revolucionária, não apenas em momentos de intenso combate político, nas praças de guerra urbana ou nas emboscadas, fugas e contra-ataques, mas principalmente no cotidiano, na percepção de mudança da realidade através do desprendimento das coisas materiais, a serviço de um propósito maior;
2 – a perpetuação de acontecimentos que afunilavam o país em um propósito ditatorial. Aos 15 anos de idade Vera já era militante do Movimento Secundarista. Aos 20, ingressou no MR-8. No entanto, fundamentalmente por ter tido a atmosfera propícia para uma conduta social distinta dos mesmos de sua classe, Vera não desistiu de seus ideais, e dos ideais de uma minoria de um plano contra a ditadura, nem com o descenso, inevitável a todo processo de articulação política. Dessa forma, os acontecimentos contrários (podemos colocar aqui como as “baixas” do intento revolucionário) apenas fortaleceram o corpo já exaurido pelas batalhas urbanas. Enquanto alguns líderes intensificaram a luta apenas no pós-AI-5, Vera Silvia Magalhães já tinha sentido o gosto do próprio sangue derramado em prol do ideal de liberdade, a sensação do suor que escorria pela pele, na luta diária e insistente, a perda dos sentidos individuais que se confundiam com as necessidades do Brasil;
3 – o sequestro do embaixador americano, Charles Bruke Elbrick. Não que ela quisesse, mas mesmo que quisesse, já não era mais possível voltar atrás. O sequestro, que até hoje é lembrado como a maior ação de uma guerrilha no Brasil, foi visivelmente o divisor de águas na vida da guerrilheira. (a seguir, mais informações).
Mulher firme na luta, Vera Silvia Magalhães professava sua revolta contra a ditadura. Era contra até a ditadura do proletariado, por ser ditadura. Um conceito de domínio absoluto e irrevogável que lhe causava aversão. A mulher que batalhou incansavelmente por uma causa de sucesso quase impossível, jamais arredava o pé dos espaços que poderiam frutificar transformações para toda a nação verde e amarela. Era forte, desde o êxito inimaginável do épico acontecimento da Marcha dos 100 mil até os períodos de grande retrocesso, como as prisões dos líderes da UNE, que terminou por alastrar o medo da prisão dentre todos os que abraçavam a causa, culminando consequentemente num esvaziamento dos locais de debates e afastamento previsível das manifestações.
Cinematograficamente rentável “loira 90”, porém por dentro, uma jovem com muitos medos, como o de manusear armas de fogo, por exemplo. Mesmo assim, nenhuma dessas fraquezas contava como aspectos para a desistência. Segundo ela mesma, todos os obstáculos deveriam ser superados para que a tão sonhada liberdade fosse possível.
“Nós queríamos uma coisa muito difícil a ser alcançada, que era o socialismo, então todas as dificuldades teriam que ser superadas...” (Vera Silvia Magalhães)
Em setembro de 1969, Vera sequestra no Rio de Janeiro o embaixador americano Chales Bruke Elbrick, junto com militantes da ANL e MR-8. Para abrir mão do embaixador, o grupo exigiu a libertação de 15 presos políticos, mais a publicação e divulgação em rádio e televisão de um manifesto contra a ditadura. Como anteriormente dito, foi a maior ação da guerrilha já realizada no país, mesmo não tendo atingido seu objeto nuclear: trazer adeptos ao ato revolucionário que florescia no Brasil. O grupo de qual Vera fez parte não foi só o pioneiro, mas o único.
“Nossa ideia não era divulgar a força do militarismo, era divulgar a força das ideias...” (Vera Silvia Magalhães).
Contudo, não havia derrota mais dolorida que superasse os momentos que estavam por vir na vida dessa guerrilheira.  Um dia, em um cerco armado graças a denuncia de alguém próximo, Vera foi emboscada, junto de seu marido Zé Roberto, pelos agentes repressores do DOI-CODI. Após uma troca de tiros e disparos dos emboscados para se defender, Vera foi ludibriada a crer pelos agentes que tinha matado seu próprio companheiro, conhecendo a verdade apenas após sua libertação. Na verdade, Zé Roberto tinha caído no chão, mas sequer tinha sido atingido por disparos (Zé Roberto morreria em confronto com a polícia tempos depois). O momento é descrito pela guerrilheira como um dos piores de sua vida, provando que as cicatrizes da tortura psicológica, reunindo elementos de desestruturação permanente, são mais largas e profundas que as cicatrizes da tortura física.
Vera foi a única pessoa a ser torturada na Sexta-feira santa, nas dependências do DOI-CODI no Rio:
“Eles me disseram: você vai ser torturada como homem... Como Jesus Cristo!” (Vera Silvia Magalhães).
A guerrilheira desconhece os motivos de tanto ódio, de tanta brutalidade durante as sessões de tortura, mas uma de suas teorias abarca o fato de ser mulher e de ter conseguido, de certa forma, contribuir para ao menos arranhar a superfície da ditadura imposta pelos militares burgueses, ditadura dos homens, que apoiava todos os tipos inimagináveis de repressão, especialmente toda e qualquer ação que partissem das mulheres. De “sexo frágil” a líder da militância reconhecida e como nunca ousada, Vera surpreendeu negativamente seus opositores e sofreu por suas ações vitoriosas. Mesmo com torturas tão desproporcionais, Vera não disse o que seus torturadores queriam ouvir. Mantinha-se firme em espírito, mesmo a carcaça de seu corpo já estando tão frágil, com 25 quilos a menos.
 "Herdei da tortura um estado de dor" (Vera Silvia Magalhães).
O chefe de sua tortura foi Amilcare Lobo, psiquiatra. Segundo relatava Vera, a tortura psicológica foi muito mais dolorida que a tortura física. E assim se passaram três meses de intensa tortura, com outros 40 presos políticos. Em julho de 1970 foi solta e banida do Brasil em troca da libertação do embaixador alemão Von Holleben, que havia sido sequestrado.
A mulher que teve tanta coragem e determinação para enfrentar todas as adversidades possíveis durante o processo de combate a ditadura, também teve coragem para fazer uma revisão crítica de todas as ações e deixando assim de ser militante, no Chile, em 1973:
“A ficha caiu de que nós tínhamos sido de fato derrotados...” (Vera Silvia Magalhães).
Com a anistia concedida aos exilados políticos, Vera Silvia Magalhães retorna ao Brasil no final de 1979.
Firme na luta, fiel aos seus valores revolucionários, Vera Silvia Magalhães sempre será um exemplo de superação, de resistência, de atitude frente a condições adversas e aparentemente incontroláveis. Vencendo os tabus do sexo, da beleza angelical, a mulher guerrilheira sabia que o gosto do silêncio seria muito mais amargo que o gosto da dor, de quem era tão intima e conhecedora.

Obs.: As principais informações que compuseram o seguinte texto foram extraídas do programa “Memória Política”, da TV Câmara, intitulado “Vera Silvia Magalhães: a História de Uma Guerrilheira”.




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