A
legalização do aborto tem sido uma das principais (e a mais defendida)
bandeiras de luta dos movimentos sociais feministas ou de mulheres, inserida no
contexto da emancipação das mulheres e, em última instância, pela garantia dos
direitos humanos. Essa luta se torna ainda mais legítima quando consideramos as
condições desumanas que as mulheres que recorrem ao aborto clandestino se
submetem e às reais implicações à sua saúde culminando, muitas vezes, em morte.
Contrariamente
aos outros países, ainda há entraves no reconhecimento do debate sobre aborto
na perspectiva dos direitos humanos, sendo este atrelado, majoritariamente, à
alta incidência de mortalidade materna derivada da prática do aborto, por
conseguinte, sendo tratado como uma questão de saúde pública. Desse modo, a
temática ainda não é vista sob a ótica da garantia de um direito da mulher,
como aconteceu nas discussões sobre a legalização do aborto nos Estados Unidos,
por exemplo.
Cabe
discutir aqui dois aspectos extremamente significativos (e porque não dizer
decisivos) para a polêmica da legalização do aborto na América Latina: (1) a
forte influência da Igreja nos assuntos que envolvem ética e moral, em que se
observa uma estreita relação entre a mesma e o Estado o que, de certa forma,
permite a interferência e condução dos princípios religiosos nas decisões
legais. (2) A cultura machista ainda é muito marcante nas sociedades latinas
que determina o modo como as mulheres são criadas e educadas, assim como as
políticas de saúde voltadas para a mulher são implementadas; não é permitido à mulher
o direito de decidir sobre seu corpo e sua vida, tampouco que conheça seu
próprio corpo e sua sexualidade, ficando a mercê de uma gravidez não planejada
e/ou indesejada.
Nos
países latino-americanos e caribenhos o aborto é totalmente proibido no Chile,
em El Salvador, na Nicarágua, em Honduras, na República Dominicana e em San
Martín. Dentre os países que permitem o aborto sob permissivos temos, em caráter
mais limitado: Paraguai, Argentina, Peru, Bolívia e Brasil; os permissivos mais
amplos são em Colômbia, Uruguai e México. O aborto é permitido sem restrições
nas Guianas, em Barbados, em Cuba, nas Antilhas Francesas e em Porto Rico.
Voltando-nos
para o Brasil, a discussão sobre o aborto inseguro começou na década de 1980.
De lá para cá, muitos foram os debates e lutas dos movimentos feministas em
prol da legalização do aborto. Entretanto, esse debate sempre foi intensamente
permeado pelas concepções e princípios religiosos. O ponto principal de
discussão não é a questão dos altos índices de mortalidade materna causadas
pelo aborto clandestino, e sim o aspecto divino do embrião. E para entender um
pouco melhor como essa questão foi trabalhada no Congresso Federal é importante
pensar sobre a bancada religiosa que o compõem. Em 2007, havia no Congresso
bancadas específicas em “defesa da família”, quais são: a frente “Em defesa da
vida, contra o aborto”, tinha apoio de 194 parlamentares; a “Frente Parlamentar
em Favor da Vida”; a “Frente Parlamentar da Família e apoio à vida” com 215
membros, e a ”Frente Parlamentar contra a legalização do aborto, pelo direito à
vida”, com 230 integrantes e mais 43 congressistas que figuram na bancada
evangélica. Apesar da postura favorável do ex-presidente Lula em discutir a
legalização do aborto (mesmo que pela vertente de problema de saúde pública),
sua sucessora, a atual presidenta Dilma Rousself em sua campanha provocou um
imenso retrocesso nas discussões que outrora estavam sendo encampadas no país,
ao mudar da posição favorável à legalização do aborto para uma postura “a favor
da vida”.
Nesse
contexto, para que o debate sobre a legalização do aborto volte à tona e seja
palpável (tomando como exemplo os países em que o aborto é legal, sem
restrições), é indispensável que: (1) haja uma ampla retomada da visibilidade
da temática na sociedade, sendo este objeto de debates nas escolas, locais de
trabalho, sensibilizando as pessoas à luta pela legalização do aborto. Aqui, os
movimentos sociais feministas e de mulheres devem protagonizar e fomentar esse
debate, principalmente na oposição às declarações e atitudes da Igreja; (2)
seja realizado um plebiscito, de modo que a opinião da sociedade seja
registrada e (3) com o apoio dos movimentos sociais de “minorias” (movimento de
mulheres, homossexuais, etc.), deve-se criar fóruns nacionais de debates, tendo
vistas à elaboração de um projeto de lei (PL) propondo a legalização do aborto
para ser votado nas diversas instâncias legais do Estado. Lembrando que estas
são estratégias disparadoras (e não um fim) de um projeto muito maior, que
perpassa a libertação da mulher – a libertação humana.
Ao
apresentar nossa luta temos que deixar claro que a proibição da prática do
abortamento não impede que a mulher decida e o faça, mesmo que sob condições
precárias. Ainda mais, legalizar o aborto não significa que todas as mulheres
optarão por fazê-lo, tornando-se uma prática banal. Em estudo feito em
Portugal, onde o aborto é legal desde 2007, mostrou que das mulheres atendidas
num serviço de saúde para fazer o aborto, a avaliação da médica é de que as
mulheres já chegavam ao serviço decididas; e, embora a médica considerasse que
era relevante o aconselhamento, a própria mulher não o queria.
Para
a mulher a escolha por um aborto não é uma decisão simples, envolve um
“auto-dialógo” em que, quando ela procura os serviços, na sua maioria já tem
clareza da escolha e do que isto implica. Não achamos que o aborto seja bom,
nem que o mesmo deva ser feito a todo custo, apenas que ele possa ser praticado
por mulheres que assim decidirem, sem que as mesmas sejam criminalizadas, constrangidas
e expostas a riscos totalmente evitáveis, que é pior.
Não
somos ingênuas em acreditar que uma lei irá dissipar toda a tensão que permeia
a temática. Não basta então somente legalizar o aborto; é indispensável o
fortalecimento de políticas de saúde voltadas à educação sexual e reprodutiva,
de modo que as mulheres adquiram conhecimento sobre seu corpo e sua sexualidade.
Ainda mais, é preciso lutar cotidianamente e coletivamente contra a cultura
machista e patriarcal que impera em nossa sociedade!
Nenhum comentário:
Postar um comentário